(Joêzer Mendonça, Nota na pauta)
Quando ouvi o CD Avinu Malkenu pela primeira vez, estranhei do jeito que se estranha uma novidade. Apesar da beleza do propósito, tudo me pareceu fora de lugar. Dias depois, ouvi o cd outra vez, e me vieram à mente apenas duas palavras: diálogo e origem.
A intenção dos produtores do CD (Leonardo Gonçalves e Edson Nunes Jr) é a busca de diálogo com outras culturas, com outras pessoas, ligadas ou não a uma religião. Mas esse diálogo é estabelecido com um profundo arraigamento à própria identidade religiosa. A busca de diálogo é feita a partir da raiz. Não por acaso, a capa do CD é uma raiz. E uma raiz cresce, vira planta, vira árvore, aparece junto com outras árvores, forma floresta, mas seu tronco, suas folhas e seus frutos são só as partes visíveis da raiz que deu origem a tudo o mais.
Algumas das músicas de Avinu Malkenu estão enraizadas na tradição litúrgica do judaísmo. Ao mesmo tempo, algumas de suas letras enfatizam aspectos do cristianismo, particularmente do adventismo. Alguns arranjos reverberam a música tradicional ibérica e a música clássica européia. A menção à Páscoa, uma festa judaica milenar, está ao lado da ênfase moderna ao “Temei a Deus e dai-Lhe glória / pois é chegada a hora do Seu juízo”. O Êxodo vai desaguar no Apocalipse.
Letras de grande sugestão poética (“o ar das montanhas, límpido como vinho e o perfume dos pinheiros / é carregado pela brisa do crepúsculo em meio aos sons de sinos / e na sonolência de árvore e pedra se acha cativa em sonho / a cidade que se assenta solitária”) são seguidas de uma canção de uma frase apenas (“ano que vem em Jerusalém”).
Diálogo e raiz permeiam cada música desse CD. Isso está na regravação de canções de músicos nascidos em Israel e na composição de canções inéditas ao estilo judaico por músicos cristãos brasileiros. Está no arranjo de piano e cordas para “Nachamu Nachamu” com alusão ao Prelúdio em Dó Sustenido menor, opus 3, nº 2, de Rachmaninoff, e no arranjo de populares toques mouros/ibéricos para “L’shana habaa”. Está na voz falada quase monocórdica na abertura de “Osse Shalom” em contraste com as vozes harmoniosas do canto a capella em “L’cha Dodi”.
Costuma-se dizer que o Brasil foi formado por três raças tristes: o português exilado da metrópole, o índio retirado da aldeia e o negro desterrado da África. O judeu é a quarta “raça triste”. O povo judeu é um povo que se espalhou e foi espalhado. Longe de casa, suas canções ficaram carregadas de saudade. Mas seu larguíssimo histórico de diáspora, de preconceitos, de expulsões e boas-vindas, de tragédias coletivas, não se traduz em melancolia. Na música tradicional judaica, a tristeza não é sem fim. À frente, há felicidade, sim.
Isso faz com que as canções, que começam plenas de contrição, como se o cantor estivesse coberto por um saco de cinzas, mudem pouco a pouco para um andamento mais rápido, mais alegre, como se o cantor visse o céu aberto diante de si. Uma coisa é reconhecer o pecado e ter o senso da radical diferença entre a impureza do homem e a santidade de Deus. Outra coisa é saber-se perdoado e ter a certeza do cumprimento das promessas de Deus.
A canção judaica sai da tristeza para a alegria, da contrição para a salvação, do pecado para o perdão, da terra finita para a vida eterna.
Para o judeu, Jerusalém não é uma cidade, é um estado de espírito. Na canção “Yerushalayim shel zahav” o cantor diz: “Jerusalém de ouro, e de bronze, e de luz / para todas as tuas canções eu serei um violino”. A distância aumenta a saudade, mas não diminui a esperança: “Ainda se ouvirá nas ruas de Jerusalém a voz de júbilo e a voz de alegria da noiva e do noivo” (na canção “Od yishama”). Mesmo presente na cidade, mal encerrada uma festa (a Páscoa), já se canta “ano que vem em Jerusalém”.
A primeira música chama-se “Avinu Malkenu” (em português: “nosso Pai e nosso Rei”). Alguns cristãos falam apenas da soberania do Rei e não enxergam a Deus como Pai amoroso. Outros fazem exatamente o inverso e só vêem a graça do Pai. A primeira música do CD já introduz o conceito bíblico de Deus, um Ser que é Rei da justiça e Pai da bondade.
A segunda música, “Adon olam”, parece extensão da primeira. O tema da soberania transcendente de Deus é reiterado (“Mestre do universo”, “Ele é Um e não há outro”) em conjunto com a imanente misericórdia divina (“Rocha das minhas dores no momento da angústia”).
Leonardo Gonçalves capturou não apenas o virtuosismo da voz judaica cantada: seus melismas se integram à paisagem natural da música. Ele também compôs duas músicas que poderiam ter sido feitas por alguém nascido e criado na tradição musical judaica: “Avinu shebashamayim”, a oração do Pai-Nosso, e a comovente “Nachamu Nachamu” (Consolai, consolai), palavras de conforto aos filhos de Deus extraídas de Isaías 40:1-3.
Enquanto o Pai-Nosso é a invocação de Deus feita pelo homem, “Nachamu” é a voz de Deus aos homens. Uma apresenta as dívidas impagáveis, a outra outorga o crédito imerecido. Uma pede, a outra consola.
“Nachamu nachamu” tem um formidável arranjo de cordas de Ronnye Dias e um piano (de Wendel Mattos) de cortar o coração. Ouvir a música sabendo a tradução da letra – “voz que clama no deserto, preparai o caminho do Senhor, endireitai no ermo vereda a nosso Deus” – transmite a sensação de estar no meio do povo ouvindo um antigo profeta advertir Israel com lágrimas nos olhos.
Nenhuma cultura está pronta e acabada para sempre. As expressões culturais são dinâmicas, se renovam ao agregar influências de outras culturas. A música judaica influenciou a música ibérica de 10 séculos atrás, fazendo surgir a tradição musical moura. Por outro lado, músicos judeus longe de Israel absorveram a cultura local para renovar a tradição. Assim, ouvindo a festiva canção “L’shana habaa” percebe-se a raiz da música moura/ibérica e como sua percussão está a um passo da música caribenha.
Nesse contexto de interação cultural, ouvimos o shofar e o alaúde e também o piano elétrico. Ouvimos a tradição no estilo de Uzi Hitman, compositor de “Adon olam”, e também a modernidade de Nurit Hirsh, regente e também compositora de mais de mil canções, autora de “Osse shalom”, originalmente composta para um festival de Música Chadíssica, de 1969, que se tornou parte da liturgia em sinagogas e comunidades judaicas no mundo inteiro.
A simplicidade melódica das canções esconde a sofisticação dos arranjos. André Gonçalves (irmão de Leonardo), Ronnye Dias, Wendel Mattos, David Maia, Samuel Krahenbühl e César Marques trabalham como artífices a serviço da carpintaria musical.
Na quarta canção do CD, há um belo arranjo orquestral em que as cordas vão se sobrepondo e dialogando com a voz principal da música. Já a música “L’cha dodi” abre o diálogo com o modo clássico-erudito de compor para vozes. Ao final, a canção é cantada a capella e a melodia recebe uma harmonização vocal requintada.
“L’cha dodi” é uma música tradicional que, num CD gravado por um adventista do sétimo dia, revitaliza as raízes e constrói pontes. É uma canção que antecede o shabat, fazendo parte do serviço religioso chamado “Cabalat Shabat” (Recebimento do sábado). No início, a canção diz: “A ordem ‘lembra-te e observa’ foi pronunciada de uma só vez / o D-s único no-la fez ouvir”. E mais adiante:“Vamos ao encontro do shabat, pois ele é a fonte da benção / estabelecido desde o princípio / foi a conclusão da criação / mas, no planejamento, o início”.
Quantas músicas são tão assertivas assim em relação ao sábado? Como esta canção é cantada em hebraico e faz parte da tradição judaica, ela parece comum. Mas no contexto da apologia sabática, me arrisco a dizer que ela é singular.
O diálogo com o adventismo corresponde a uma volta às origens bíblicas também na questão fundamental da lei de Deus. A oitava música do CD transcreve os versos de Apocalipse 14:7 e 12. E aí está a mais perfeita tradução da ética desse CD: o diálogo interreligioso que não perde a identidade original. O adventismo de Leonardo Gonçalves não foi diluído na música judaica. Ao contrário, a cultura musical está a serviço da identidade religiosa de missão.
Juízo, reconhecimento de um Criador literal (“adorai aquele que fez”, isto é, o Criador), e a citação “aqui está a perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé de Yeshua”: a coragem de afirmar tais distinções doutrinárias só pode vir de uma honesta convicção pessoal.
E por que obedecer aos mandamentos? A canção “V’haer enemu” responde:“apega nosso coração aos Teus mandamentos / a fim de não nos envergonharmos e sermos humilhados / e não virmos a fracassar para todo o sempre”.
Na penúltima música do CD, composta por André R. S. Gonçalves, os trechos selecionados de cada estrofe ressaltam quatro pontos importantes:
– a graça divina: “a Tua ira se retirou e Tu me consolas”;
– a salvação: “eis que D-s se tornou a minha salvação”
– a missão de levar a mensagem ao mundo: “fazei notório Seus feitos entre os povos / contai quão excelso é Seu nome”
– a adoração como resposta aos atos de Deus: “cantai ao Senhor porque fez coisas grandiosas”.
Um dos versos da canção diz: “porque o Senhor é a minha força e o meu cântico”. Isso é como dizer: o Senhor é meu mandamento e minha música, a minha ética e a minha estética.
A estética é finita, limitada. A ética bíblica é eterna. A melodia (a estética do homem) muda enquanto a Palavra (a ética de Deus) não muda. Os músicos cristãos costumam unir a estética das culturas humanas à ética bíblica. A diferença em “Avinu Malkenu” é que sua ética está na busca de diálogo sem perder as raízes ao passo que sua estética reforça uma volta às origens sem temer o diálogo. Que cresça e dê frutos.
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P.S. para um músico: Wendel Mattos faleceu há poucos dias. Um trecho de “Adon olam” diz: “Nas Suas mãos eu depositarei o meu espírito no momento do sono, e então despertarei”. Não o conheci pessoalmente, mas posso dizer que para nós, que o perdemos, parece que uma longa e desafinada estrada ainda nos separa do reencontro. Mas para Wendel, seu descanso em Deus é apenas uma brevíssima e silenciosa pausa antes dos acordes sinfônicos da ressurreição que virá um dia para os que dormem no Senhor.