A mídia é em grande parte responsável pela educação jurídica em nosso país, uma vez que não temos nenhuma disciplina sobre o assunto na grade curricular do Ensino Médio. Isso faz com que o conhecimento para aqueles que não cursam graduação em direito seja, muitas vezes, distorcido, criando assim uma série de lendas jurídicas.
Digo que o conhecimento é distorcido, pois muitas vezes a mídia divulga uma decisão judicial atípica (que muitas vezes é depois reformada na segunda instância) como se fosse um retrato fiel do ordenamento jurídico brasileiro. Soma-se a isso a habilidade natural de as pessoas aumentarem a informação e, pronto!, temos uma salada de verdades e inverdades.
Um exemplo claro disso ocorreu em um dos nossos treinamentos de diretoria. O palestrante estava explicando a instrução da Divisão Sul Americana quanto a não se permitir crianças e adultos dormirem em uma mesma barraca, então um líder interrompe com a pérola: mas aí não seria abandono de incapaz?
Essa não foi a primeira vez que tentam enquadrar uma situação corriqueira no crime de abandono de incapaz. Há também aqueles que não sabem diferenciar responsabilidade civil e responsabilidade penal. Ou ainda aqueles que NUNCA leram o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e citam que isso ou aquilo é contrário ao ECA. (Sobre o Estatuto já temos um post falando sobre os principais pontos AQUI). Vejam bem, não estou criticando as pessoas que não tiveram acesso ao conhecimento e sim aquelas que acham que sabem e assim propagam informações completamente erradas.
Para tentar sanar o problema das informações distorcidas vamos analisar com cuidado o que é abandono de incapaz.
Primeiramente, vamos começar com o que chamamos de tipo penal, ou seja, o que a lei diz:
Art. 133 – Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:
Pena – detenção, de seis meses a três anos.
Incapaz são apenas os menores de 18 anos? Definitivamente não! Incapaz, segundo o Código Civil (Art. 3º e 4º), são todos os que não podem exprimir sua vontade. Dessa forma, um idoso ou alguém com deficiência mental também podem ser considerados incapazes.
Então todos os menores de 18 anos são incapazes? Também não. Os maiores de 16 são relativamente incapazes e essa incapacidade pode ser suprida com a emancipação (Art. 5º).
O que significa abandonar? Para o Direito Penal, abandonar é deixar só (sem a devida assistência) pessoa que está sob seu cuidado, vigilância ou autoridade, não sendo capaz de se defender dos riscos do abandono.[1]
Para que o crime se configure não é necessário que aconteça nada de pior com a criança/adolescente, o simples fato de deixar sozinho sem assistência já pode ser considerado crime. E mais uma coisa, se o crime ocorre em um lugar ermo (um acampamento, por exemplo) aumenta-se a pena em um terço.
Agora vocês podem estar pensando assim: ninguém é louco de deixar uma criança sozinha em um acampamento. Na realidade, às vezes algumas situações passam desapercebidas como, por exemplo, deixar um conselheiro de 17 anos vigiando as barracas enquanto o restante do Clube vai para uma cachoeira a 2 km de distância. Por esse motivo precisamos ficar espertos, entretanto, sem “neuras” achando que o fato de dormir em barracas separadas, ou de permitir que a criança (aquelas que já vão sozinhas para a escola) volte só para casa no domingo de manhã, depois da reunião do Clube, vai configurar um crime.
Mais um lembrete, mesmo que o fato não seja tipificado como crime, ele pode ser enquadrado na Responsabilidade Civil, mas isso é assunto para outro post… Bom senso e cuidado são as palavras chaves. Deus vai nos pedir contas do que fizemos ou deixamos de fazer a essas crianças com muito mais severidade do que qualquer lei humana, e perante Ele não há como mentir nem arguir inimputabilidade.
[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 680.
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